Era um sábado ensolarado e, como bem típico de uma cidadezinha de interior, daquelas em que os moradores andam alguns passos e se esbarram novamente após alguns minutos, eu e seu Milton acabamos nos cruzando e parando para um breve cumprimento e aperto de mãos. Propício final de semana para fazer qualquer coisa de divertido, inclusive, dormir, já que era meu dia de folga, mas, especificamente, a partir desse final de semana, sucumbi em algo diferente.
Ainda sem rumo nessa manhã e já perto da hora do almoço acabamos prolongando nossa descompromissada conversa até um pequeno restaurante próximo de onde estávamos. Lá dentro, das poucas mesas distribuídas no recinto, um casal e um senhor estavam sentados em outras duas mesas. O casal conversava apenas com uma garrafa de refrigerante na frente da moça, enquanto o idoso, na outra mesa, sugava vagarosamente um caldo verde acompanhado de um minúsculo copo que devia conter uma dose de aguardente.
Caía bem a cervejinha gelada com o calor que fazia lá fora para abrir o apetite e receber um delicioso almoço com gostinho de caseiro, e foi o que pedimos. Parada rápida, nada de embriaguez, alguns copos para duas ou três garrafas de cerveja não deixaram nenhum dos dois com qualquer sinal de alteração ao retornar para casa. A não ser pelo fato de após tantos assuntos variados e não importantes trazidos à mesa, nesse ínterim, eu mencionar a compra de uma barraca de camping que ainda não havia usado por falta de um amigo ou turma de aventureiros. Não deu outra, nos envolvemos na conversa e nos empolgamos pela aventura de acampar naquele dia; assim, de bate pronto, um acampamento expresso para a estréia da inspiração de nossa conversa: a barraca – depois até parei pra pensar se não foram realmente aqueles poucos copos cheios de calibrados graus que me levaram a tamanha empolgação. Por sinal, a barraca era grande, cabiam até quatro pessoas, vamos dizer três para se dormir melhor, sem se espremer lá dentro, com conforto; dava para dividir o espaço com seu Milton em caso de chuva ou mesmo tirar um sono sem que um incomodasse o outro.
Mas ainda não falei de seu Milton. Era um pouco mais velho do que eu, beirava uns quarenta, tinha certa experiência em acampamento – pelo menos foi o que me disse, da época em que participava da equipe de desbravadores em seu grupo religioso – sabe-se lá em que época foi isso! Era uma pessoa simples, trabalhava como inspetor de alunos na única escola municipal da cidade, todos o conheciam, era um bom homem, aquela rotina de casa para o trabalho e do trabalho para casa, tinha dois filhos pequenos e, sua esposa, um salão cabeleireiro onde trabalhava mais quando havia eventos comemorativos na cidade. Nos dávamos bem, com frequência reuníamos nossas famílias para um jogo de poker na casa de um amigo nosso, Dr. Duarte, cardiologista que escolheu a calma e a tranqüilidade do interior para viver.
Pois bem, seu Milton disse que levaria o básico: canivete, lanterna e um lençol em caso de frio. Eu, ao chegar em casa, faria aquela busca de rotina no Google para preparar minha check list e tentar não deixar faltar nada imprescindível, afinal, era meu primeiro acampamento.
Nossa conversa, então, se baseava na escolha do local. Muitos sítios formatavam a vizinhança da cidade. Uma área muito extensa e agradável poderia servir de cardápio para a nossa escolha. Um local mais ou menos povoado? Que pegasse uma confortável sobra de sinal de celular ou uma completa falta de comunicação? Dentro de mata fechada ou próximo à civilização? – até o fato de se levar uma bússola foi cogitado, e me imaginei novamente na internet atrás de um rápido e útil tutorial sobre orientação com bússolas e assuntos relacionados como: agulhas, magnetismo, pontos cardeais, graus… Bichos me vieram à cabeça, rios, insetos, montanhas, fogueira, rapel, caça, pesca, e uma infinidade de coisas até além do tema e do ato de aventura que estávamos propostos a realizar. Por alguns segundos, aqueles em que ficamos com os olhos meio arregalados, unidirecionados, sem prestarmos atenção no que estão nos falando, porém, ouvindo ao longe, ainda pensei em desistir, mas o composto de cevada me trouxe de volta à aventura e sugeri, a seu Milton, quase como um ato decisório, acamparmos em um sítio meio longe meio próximo à cidade; era uma mistura de receio de ir longe com a vontade de ficar mais perto de qualquer ajuda em caso de emergência; tudo pela falta de experiência em acampamento que estava em mim e me invadia. Certo era que, quanto maior fosse a dificuldade que criássemos para nós mesmos, maior seria o grau de aventura pelo risco que poderia nos oferecer. Em compensação, esse risco poderia nos trazer grandes prejuízos.
Com a decisão tomada, retornamos para nossas casas onde, tomados por outras tarefas domésticas e os preparativos para o acampamento, acabamos atrasando o horário marcado para nossa saída.
…
O atraso era notório e evidente; agora, sem uma boa ajuda não conseguiríamos chegar ao local antes de escurecer, pois, levaríamos, à pé, cerca de 1 hora. Com quase tudo em mochilas ou enrolado em sacos, esquecendo até de conferir nossa sugerida lista de materiais necessários quase desistimos, desanimados frente ao horário avançado.
Nosso ponto de partida seria o matadouro da cidade, a primeira edificação do caminho de terra que nos levaria ao sítio combinado para o acampamento. Olhávamos para o sol se pondo e debatíamos sobre qual decisão tomar naquele instante. A cada minuto o crepúsculo invadia o cenário à nossa frente e sabíamos que, à pé, a escuridão nos alcançaria pelo caminho e dificultaria nossa chegada, a limpeza do terreno, a colheita da lenha para a fogueira que espantaria os insetos e nos deixaria mais aquecidos, a preparação da barraca e a colocação dos utensílios nos devidos locais. Em fim, uma série de fatores trazidos à tona em uma hora tão crítica.
Para com a minha consciência, eu tentava atribuir esse tipo de imprevisto a minha inexperiência em acampar, mas e a de seu Milton como desbravador? Preferi não expor meu pensamento a ele, quebraria o clima da aventura que já estava por si só prejudicado. Não bastasse todos os imprevistos, seu Milton, que parecia até ter ouvido minha conversa comigo mesmo, acabou por definir minha parcela de culpa, caso ele estivesse assumindo a sua como desbravador fracassado, me perguntado se eu havia pedido qualquer tipo de autorização ao proprietário das terras onde iríamos acampar, já que fui eu quem sugeriu o local, e esse simples ato afastaria a hipótese do dono das terras chamar a polícia ou algum capataz zeloso tentando nos expulsar, nos surpreender já na chegada ou até mesmo dormindo depois que estivéssemos nos instalado. Sem graça, balancei a cabeça negativamente, mas ele se mostrou cúmplice por não ter sugerido sua colocação em nossa conversa no restaurante e, afinal, não caberia tal discussão sobre apontar responsáveis, era um momento de lazer e deveríamos pensar em diversão e numa forma simples de chegarmos a uma solução.
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O matadouro, a nossa frente, já escondia grande parte dos últimos raios de sol. Era uma construção antiga, ainda do tempo de nossos bisavós, uma das precursoras da cidade. Paredes muito altas e cheias de rachaduras; em várias partes o reboco faltava e avistava-se os tijolos crus; no que ainda sobrava pelas paredes, a terra do caminho já a cobria e a pintura exibia várias cores de demãos; acima da ombreira superior da porta de madeira principal fechada com uma grossa corrente e cadeado, ainda se via esculpido o ano da construção, 1846; as janelas não existiam, grades enferrujadas isolavam o ambiente interno do externo; do lado de fora avistávamos inúmeras, grandes e grossas correntes e ganchos pendurados; a rampinha lateral com um extenso rastro de esterco servia de caminho à morte para o gado que seria abatido e vendido em dias de feira no mercado público. Pela grade vazada vi a sujeira do sangue mal limpo pelos abatedores ou pelas crianças que ficavam por ali ajudando, por trocados, a limpar o local; as moscas pareciam não dormirem cedo, ainda estavam por lá sugando aqueles restos mortais; era um ambiente que não dava para se abrigar nem em dias de tempestade.
Para minimizar os riscos de percalços que poderiam nos fazer desistir de vez, como a luz do pôr-do-sol no fim do caminho que ainda avistávamos bem ao longe, uma idéia, concomitante, nos veio a cabeça: o sítio do Dr. Duarte.
…
Na ligação, Dr. Duarte se mostrou muito solícito em nos ajudar, embora também concordasse que a hora já fosse avançada para chegar em um sítio que precisaria de limpeza para nossa instalação; há tempos o mesmo não passava alguns finais de semana ou feriados, seu emprego e plantões não o deixava com muito tempo para esse tipo de lazer, e seu caseiro só era solicitado quando Dr. Duarte ia com a família.
O próprio ofereceu nos levar ao local em seu carro. Nossa empolgação voltava e ressurgia o clima do acampamento. Em poucos minutos Dr. Duarte chegava com nosso transporte.
O estreito caminho, agora tomado pela escuridão, era ilustrado pelos faróis amarelados da caminhonete preta. Seriam vinte minutos de muita poeira, curvas e buracos que ficavam para trás. Em muitos momentos víamos algumas cabeças de gado passando pelas cercas laterais atrás de algum capim do outro lado do arame; insetos cortavam vôo frente ao carro e alguns acabavam deteriorando-se no vidro do automóvel; vez ou outra Dr. Duarte reduzia a caminhonete ao passar mulas ou bodes atravessando o caminho. A vontade de chegar logo sempre nos faz ter uma sensação de que demoramos a chegar ao local que queremos. A volta, despreocupada, é seu paradoxo. Locais por onde ainda não havíamos passado ficavam para trás como desconhecidos recebendo seus intrusos em horário impróprio.
Diferente do dia, o frio da noite quase que rotula que é hora de se ficar em casa dormindo no aconchego do lar, que caminhos não querem ser pisados, que matos não querem receber o corte dos facões, que os bichos não querem receber estranhos em seu habitat e que os sons do silêncio se farão presente sem que o homem queira em meio à mata.
Em certa parte do percurso, Dr. Duarte pegou um caminho ainda mais estreito, diferente da estrada de onde vínhamos. Já passávamos por terras de outros proprietários, fazendeiros que nunca apareciam, mas cuidadas por seus peões – lembrei-me da bússola, ficou na gaveta do criado mudo, também não tive tempo de pegar informações a respeito da forma correta de como me orientar com ela. Besteira! Era só um acampamento no sítio de um amigo que ainda estava nos levando de carro e nos pegaria de volta no dia seguinte, ainda mais, o sinal do celular, pelo menos até aquela parte do percurso, não nos deixava na mão. Abrimos algumas porteiras, umas mais distantes, outras próximas umas das outras, acho que contei umas seis.
Chegamos.
A casa do sítio do Dr. Duarte era próxima à porteira da entrada do seu terreno, nosso amigo chegou a comentar a possibilidade de ficarmos lá caso desistíssemos de ficar pela mata. Não teria graça, o legal era a barraca armada e os desafios da noite; mantivemos a idéia do acampamento. Passamos direto pela casa e o caminho estreito já não mais demarcava, no chão, o rastro de orientação das duas rodas do veículo, apenas um, como de um caminho à pé, que se estendia até um poço desativado usado antigamente para suprir as necessidades de água. O carro, então, cortou mato a dentro, Dr. Duarte tentou nos levar a um local o mais plano possível e que desse menos trabalho para a limpeza e talvez com uma possível clareira.
Não era lua cheia, não tinha clima de lual, ainda mais sem violão, mas a idéia de um local afastado da civilização, abandonado, deixava no ar aquele clima sinistro. Dr. Duarte não ficaria conosco com os faróis clareando nossas barracas, a fogueira seria a saída para uma noite inteira e a busca pela lenha seria nossa pelas redondezas “desconhecidas” das terras do Dr. Duarte.
Ao desembarcarmos do veículo, começamos a sentir os insetos passando por nós e pelos faróis do carro, alguns se prendiam em nossas roupas e até no rosto – o repelente estava na mochila, em um compartimento lateral, com certeza seria meu primeiro procedimento após o desembarque total. Os faróis miravam o local onde armaríamos a barraca e começamos a montagem. Como que já desconfortáveis pelo trabalho e abuso que demos ao Dr. Duarte, tentamos organizar tudo de forma rápida, seu Milton já colhia vários pedaços de troncos de cajueiro para queimar enquanto eu terminava a montagem da barraca. Ainda solícito, ofereceu-nos as chaves da casa a qual novamente nos recusamos a aceitar para não perder o clima de aventura. Nosso amigo nos deixaria em poucos segundos.
Com a lenha que já tínhamos acendemos a fogueira e foi o suficiente para que o Dr. Duarte já pudesse nos deixar na sua fortaleza de rodas porque desprotegidos ficaríamos nós, ao léu na natureza invadida sem aviso.
Catando ainda alguma lenha avistamos o veículo, ao longe, fazendo o caminho de volta e sumindo na primeira curva. Finalmente, nos desligamos da civilização e nossa atenção se voltou ao churrasco que preparamos. Não conseguíamos ficar parados, vez em quando alguém procurava por lenha para alimentar a fogueira, os galhos encontrados eram finos e pequenos, o fogo acabaria rápido; alternávamos entre goles de bebida e a busca por mais lenha; enquanto um buscava o outro ficava olhando o churrasco. Fazíamos o percurso com uma lanterna e notamos o terreno cercado por uma vegetação com altura mediana e fechada que ainda encostava na cerca de arame farpado, ao fundo, dividindo as terras. A chuva, durante a semana, não havia deixado muitos galhos secos e, com o facão, desbastávamos os mais baixos de alguns cajueiros.
A cada investida na busca por lenha, ouvíamos os sons da mata, pássaros noturnos dando sinais de sua presença, a sensação de estar sendo observado era constante, eu já havia passado meu repelente, mas alguns insetos grandes ainda pousavam na minha roupa ou passavam pelo meu ouvido; era melhor estar próximo ao churrasco porque além de ficar próximo à comida, o fogo espantava até os insetos grandes.
O desenho dos galhos dos cajueiros permitia até certa engenharia para a construção de uma cabana; se alojar futuramente numa casa de árvore foi algo que passou pela minha cabeça naquele momento em que fixei os olhos em um bem entrelaçado. Ainda inerte, movendo só a cabeça, tentei mapear aquelas árvores, a delimitação do terreno, até onde a vista e a claridade permitiam e dei uma outra boa olhada pelo chão cheio de folhas com mato até a altura da canela para não ser surpreendido por cobras, aranhas ou urtigas. Segui vagarosamente mais um pouco à frente, de acordo com o foco da minha lanterna e parei em baixo de uma árvore enorme, seus galhos pareciam me abraçar, as folhas, lá em cima, não deixavam eu ver o topo. Mais uma vez inerte, como que querendo ouvir ou não ser ouvido por nada nem ninguém, passeei só com os olhos por aquela enorme criatura da natureza e, entretido pela análise minuciosa, com os sons ao fundo, ainda tentava contar quantos diferentes me invadiam o ouvido; alguns deles bem próximos a mim, deviam estar na árvore que me chamava a atenção, outros pelo chão, mas não visualizava nenhum, era como se estivessem camuflados às folhas.
Continuava aqueles segundos de verificação como um biólogo catalogando espécies, me virei, sem mover os pés para localizar seu Milton e o avistei a uns cinqüenta metros de mim, sentado, devia estar saboreando o churrasco. Voltei a girar a cabeça, as folhas balançavam, um vento gélido passeou levantando folhas do chão trazendo consigo um cheiro demasiado fétido, galhos estalaram no chão atrás de mim como alguém muito pesado pulando muito alto de uma árvore. Ainda sem mover o corpo, mas girando a cabeça – pensei ser seu Milton, mas não teria dado tempo para ele chegar de onde estava até mim para pregar qualquer susto – não vi ninguém atrás de mim, mas podia sentir uma presença; não, não como a presença de uma pessoa, mas várias, um grupo de pessoas caberia naquele cenário, agitadas com a minha visitação naquele instante e local. Girei novamente a cabeça – tanto tempo na mesma posição talvez tivesse me deixado meio tonto; por poucos segundos meu foco se perdeu e a paisagem mudou com as árvores fora da posição original e o tipo da vegetação. Os galhos que havia pego caíram das minhas mãos, me abaixei novamente para pegá-los e eles estavam mais afastados, como se eu os tivesse jogado e não caído; não os peguei nesse instante; minha vista turvou, esfreguei os olhos e os vi novamente a uns cem metros. Fui ao encontro deles, a tontura ainda continuava, e a minha respiração estava ofegante; antes de pega-los, olhei novamente para o local da barraca e não avistava a luz da fogueira, seu Milton ou a barraca. Poderia ter eu ido longe demais na busca pela lenha?! A bebida não poderia ser a causa de tanta confusão, meus constantes movimentos me faziam suar e a transpiração acabava me desintoxicando, o teor alcoólico não chegava a tal ponto. Não havia tomado qualquer tipo de remédio que pudesse ocasionar efeitos colaterais como quando, certa vez, misturei vitamina C com álcool e também não tenho histórico de labirintite. A pressão! Devia ser a pressão! O sal da carne do churrasco! Seu Milton entendeu, por bem, salgar a carne além do ponto já que seria compartilhada com álcool!
Ouvi, certo dia, dizerem que é bom colocar a cabeça por entre os joelhos em caso de tontura. Foi o que fiz, ali mesmo, sentei no chão, o mato encostava nos meus braços, alguns carrapichos agarraram na minha roupa e furavam minhas costas, tentei me concentrar num ponto fixo no chão, as coisas foram parando de girar, esbocei ânsia de vômito e comecei a suar frio, encharquei a blusa e senti a respiração faltar, estava com medo de desmaiar sem que pudesse ser encontrado por seu Milton para me ajudar; por alguns segundos fiquei sem respiração, mas consciente, não consegui levantar a cabeça; como mãos, agarraram e a pressionaram para baixo e eu não tinha forças para levantá-la. Eu poderia ter ficado o sábado dormindo e a possibilidade de eu não ver mais minha família me fez passar um filme na cabeça. Tantos momentos ruins poderiam ter sido evitados, tantas palavras perfurantes poderiam não ter sido ditas, tantas cicatrizes abertas…
…
Em um último fôlego levantei a cabeça como um menino se afogando e consegui respirar novamente, muito ofegante, buscando o ar que pudesse, qualquer sensação de alívio, não pude gritar, não tinha forças nem fôlego, minhas roupas molhadas de suor grudavam no corpo, uma dor no plexo parecia esmagá-lo, consegui me levantar e caminhar lentamente, já não me importava com o que estivesse por vir, foi bom respirar de novo, minha retina abria-se como antes para eu enxergar a lanterna caída no chão, do meu lado direito, ainda com o feixe aceso, peguei-a. Parecia que também voltava a ver a luz da fogueira ainda mais abrasiva; tudo bem distante, não tinha fim aquela caminhada e meu sentido de direção só me fez caminhar para aquela luz, só podia ser o local onde estava a barraca, a fogueira, seu Milton degustando o churrasco e me aguardando voltar com a lenha. Segui em sua direção, sem olhar para os lados, não queria desgrudar os olhos para não me perder novamente.
Eu estava confiante, senti um mínimo de melhora e não poderia errar mais o foco da fogueira, ainda estava com a lanterna acesa, teimei em tirar alguns carrapichos que grudaram na minha blusa e furavam minhas costas, me arrisquei a olhar em volta sem parar de caminhar, o foco estava à frente. Os braços dos cajueiros se mostravam ainda maiores querendo me abraçar, tentei olhar o céu por entre as folhas, quase nada dava pra ver, estava nublado e, pela hora avançada da noite, um frio gelava meu braços e o meu rosto, descobertos de proteção, ainda umedecidos de tanto suor. Por quanto tempo eu haveria de ter ficado desorientado?! Só o reencontro com seu Milton poderia me esclarecer, lhe contaria todo o ocorrido. Mas, e se o mesmo não estive lá?! Se acontecera igual com ele?! Que confusão de sensações fora essa em um dia planejado para diversão?!
Minhas pernas ganhavam mais força e passei a caminhar ainda mais rápido, não adiantava chamar por seu Milton, mesmo que o estivesse vendo, a distância e o meu cansaço não permitiam. Tive certeza da minha localização quando passei pela grande árvore novamente, origem das minhas sensações, olhei para seus galhos rapidamente e senti um tremor sem igual agravado pelo suor em meu corpo que por si só já me proporcionava imensurável frio. Pude ver inúmeras pessoas distribuídas em cima daqueles galhos, mas seus corpos eram disformes, seus rostos modificavam a cada segundo o semblante numa expressão de dor, desespero e ódio; ganidos excessivos saíam deles, suas roupas eram veste negras soltas ao vento, como parte integrante do corpo, a pele pálida e podre seria a manifestação daquele mau cheiro que passara por mim há alguns minutos ou horas; consegui acelerar ainda mais o passo, mas correntes pesadas pareciam prender minhas pernas; novamente um estrondo atrás de mim com galhos quebrando e folhas sendo afastadas me seguiam, relutei em me virar, mas tinha que olhar para trás e ter certeza do que estava acontecendo. Todos aqueles seres, dez, doze, vinham atrás de mim, os ganidos eram ensurdecedores, me afligiam, como seu Milton poderia ainda não ouvi-los? Como uma disputa pela chegada eu precisava ser mais veloz! Todas aquelas vozes, mãos e desespero atrás de mim! Já conseguia me aproximar da fogueira, avistei seu Milton na mesma posição, ele se virou tranquilamente quando me viu…
Dr. Duarte veio nos buscar no dia seguinte…